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MIRANTES: EXISTE UMA OBRA DE ARTE PARA CRIANÇAS?
Virgínia Kastrup



A pergunta suscitada pela obra Mirantes, de Stela Barbieri, remete ao título do artigo de Michel Tournier (1973): “Existe uma literatura infantil?”. As perguntas ressoam, sendo Stela Barbieri artista plástica e escritora, pois esses dois eixos do seu trabalho têm a potência de acolher, interessar e envolver as crianças. Tournier problematiza a separação da literatura infantil como uma categoria à parte. A literatura infantil não cabe na categoria de livros infantis. Muitas vezes ela é recusada pelas editoras, mais interessadas em livros infantis que seguem um modelo e visam um público padrão, definido por idade, gênero e condições sociais, podendo excluir por completo a criação literária. Em seu artigo, Tournier lembra que os contos de Perrault, as fábulas de La Fontaine, a Alice de Lewis Carroll e as lendas orientais não visavam o público infantil. No entanto, eram livros tão bem escritos, com tanta limpidez e concisão, que qualquer um podia lê-los – até mesmo as crianças.

Nesta mesma direção, podemos dizer que Mirantes é uma obra de arte que pode ser fruída e experimentada também por crianças. Ela acolhe, interessa e engaja crianças não porque pode ser tocada ou por um suposto caráter “interativo”. Uma de suas qualidades é o convite à atenção e à experiência com os materiais, criando condições para uma habitação do território que ela configura. Com generosidade, o convite é extensivo à criança investigadora, que conhece com seu corpo multissensorial. A entrada e a experimentação da obra é mais uma questão de atenção do que de “fazeção”.

Os mirantes são lugares de ver do alto, ver de cima, ver de longe, ver de través. Para produzir experiências de suspensão e deslocamentos no modo mais banal de se ver, são propostas diferentes passagens: mudanças de escala, de distância, de velocidade e de ponto de vista. A proposição artística envolve a disposição de objetos e materialidades que incitam tais deslocamentos. Cadeiras de balanço e binóculos colocados próximos das janelas são dispositivos que convidam a mirar o exterior de um modo incomum. Cortinas de fitas e de contas embaralham a visão, tocam o rosto e envolvem o corpo dos visitantes. Os deslocamentos da visão convocam um corpo atento.

A miração envolve também o olhar para dentro, olhar para si, uma atenção a si. Esta atenção que se dobra do exterior para o interior surge com os deslocamentos e com a experiência de suspensão, podendo encontrar ideias e imagens, pensamentos e memórias que ativam a invenção.


A disposição dos materiais no espaço é cuidadosa e faz parte da proposição desta obra-oficina. Mirantes não é apenas um lugar de brincar. Embora também acolha brincadeiras, não é um espaço do lúdico. Ela busca envolver os visitantes – sejam crianças ou adultos – em processos de criação. Para isso, os materiais são dispostos de modo a criar tensionamentos e condições de investigação e conhecimento. Placas e cabos de madeira, tecidos e almofadas, com suas materialidades singulares, podem se atualizar na criação de pequenos territórios, que poderão ser ocupados pelos corpos, proporcionando uma atmosfera de abrigo e refúgio. A areia, matéria potente, estranha, enigmática e plena de virtualidades, suscita infindáveis experiências e é ocupada pelas mãos, que compõem com mirantes em pequena escala e também com funis, colheres e outros materais de diferentes pesos, texturas e possibilidades. A areia desacelera o tempo com seu encantamento e mistério. Sua magia atrai a atenção, ao mesmo tempo que a atenção se dobra e se volta para si.

Como trabalhar com crianças que visitam a exposição, individualmente ou em grupos? O que fazer com elas naquela obra-oficina, por uma hora ou por uma manhã ou tarde inteira? Após uma conversa e uma exploração inicial da exposição, pode-se propor a criação de novas atualizações e de diferentes formas à ideia de mirantes, a partir da lida com as materialidades disponíveis. Mirantes podem ser desenhados e em seguida transpostos da condição bidimensional à condição tridimensional, transformando-se em maquetes, em mirantes pequenos e maiores, que podem ser olhados, tocados com as mãos e ocupados com os corpos. Seria um projeto a ser desenvolvido. Todavia, a conversa inicial e proposta do trabalho só poderão ser avaliados com a experimentação corpo a corpo com a obra, acompanhando os processos que daí advém.

As crianças são especialmente capazes de uma entrega aos materiais, investigando-os repetidas vezes e buscando conhecê-los em suas múltiplas possibilidades, atentamente, vagarosamente. Tal capacidade é muitas vezes perdida pelos adultos, cuja atenção é constantemente interrompida pela ação, pelo reconhecimento imediato e pelo apelo à funcionalidade da percepção. Acolher crianças é acompanhar seus processos por meio da atenção conjunta a corpos e materiais, buscando com elas uma sintonia afetiva com abertura para a reciprocidade e para a improvisação. Aqui a atenção conjunta inclui uma cuidadosa gestão do tempo e o desafio de atualizar, a cada vez, o que a obra traz como virtualidade. Neste aspecto, acompanhar processos pode ser mais interessante que desenvolver projetos. Mas nada está garantido. Enfim, as crianças são visitantes imprevisíveis e nunca se sabe como serão suas experiências com a obra de arte.

Tournier afirma em seu texto que a força e o valor de uma obra literária residem no fato dela “criar uma necessidade irresistível de ser reescrita, contendo uma espécie de contágio do processo de criação, estimulando a inventividade dos leitores”. Lembrando Montaigne, educar uma criança não é como encher um vaso, é como acender uma fogueira. Com a proposição de Mirantes como uma obra-oficina, Stela Barbieri aposta nesta ideia e experimenta precisamente essa dimensão pedagógica da arte.






Referência bibliográfica

TOURNIER, M. Existe uma literatura infantil?. O Correio da Unesco. Ed. Brasileira. Ano 1, jan. 1973, p.33-34. Nota: Michel Tournier é um escritor francês de renome internacional. Publicou vários ensaios e romances, dentre eles “Sexta-feira ou os limbos do Pacífico”, traduzido para o português, que retoma o tema do livro “Robinson Crusoé”, (1719) de Daniel Defoe.











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Stela Barbieri é artista, contadora de histórias, autora e educadora. Dirige o bináh espaço de arte.