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Sonhando histórias

Stela Barbieri


"O sonho é feminino, imagens guardadas na fantasia, formulações que fazem parte da poesia.

O sonho é de matéria dispersante e, se não for realizado, escorrega.

O sonho é farelo que vem do alto, cai na gente e, às vezes, gruda...

Passei parte da minha vida sonhando, assim como agora, numa cadeira de balanço; mas não em repouso!

Numa cadeira veloz, que não parava de me levar (conduzir) a experiências de antes e depois...

A escola era o lugar de sonho. Apesar de quererem me ensinar, de um jeito tão sem jeito, algo que não me interessava, eu insistia em sonhar...E adorava pular o muro para tomar lanche na Zi, ou saborear pão de queijo na praça e prosear, que também pode ser devaneio.

A melhor coisa da escola é a gente que vive nela. Ainda bem pequena, sonhava, junto com minhas duas amigas: numa árvore antiga moravam umas abelhas que falavam, conversavam, vestiam saias e cantavam. Eram como bonecas. Isto era sonho segredo! Falávamos sobre nossas amigas abelhas e conversávamos, como o faziam nossas mães. Aquilo era mel, enfeitava a escola...

Mas a cadeira da classe era dura em repouso. Eu nunca fui boa de exatas ou humanas. Gostava das pessoas, dos personagens. Gostava de namorar e falar. Mas, o que eu mais gostava era da cadeira de viajar sonho. Da cadeira de ver sonho se fazendo e também de poesia e também de pintar, desenhar... Mas nunca tive muito jeito pra nada. No que eu tinha mais talento era pra sonhar. Meus sonhos eram coloridos, tinham alma, fala, palavras claras e pessoas que existiam ou que eu inventava. Eu sempre fiz isto bem, com cenários vivos e sentimentos fortes.

Quando tinha que estudar, punha-me na cadeira com o livro na mão e sonhava... Acho que existe Santo que ajuda os que não gostam das matérias escolares, gostam apenas das imagens. Além disso, eu tinha uns amigos que eu imaginava, companheiros de bons papos, a Nina e o Li. Gostava de falar com eles no banheiro de madrepérola...

Minhas amigas da realidade é que me ajudavam! Respeitavam meu jeito, nem de esquerda, nem de direita; esta minha posição: nas nuvens.

Aos poucos, fui aprendendo um jeito de realizar os sonhos..."

(Texto escrito para uma noite de
histórias para mulheres: Crisálidas)


Em minha experiência junto ao Arte Despertar, uma ONG (organização não governamental), em que desenvolvo um trabalho de assessoria com várias contadoras de histórias que prestam serviço em hospitais e comunidades, constatei que, através das histórias, crianças que vivem numa situação de doença grave ou de abandono, podem vislumbrar outra possibilidade e experimentar aventuras e afetos dos quais estão privadas no momento. Ao observar um bom narrador, percebo que ele cria o clima para que uma experiência significativa possa acontecer e para que, de alguma forma, a esperança se reconstitua e a criança possa viver, naquele intervalo de tempo, a saúde e a harmonia.

Como diz Joseph Campbell em seu livro O poder do Mito, uma coisa que se revela nos mitos é que, no fundo do abismo, desponta a voz da salvação. O momento crucial é aquele em que a verdadeira mensagem de transformação está prestes a surgir. No momento mais sombrio surge a luz.

Nossa vivência nos hospitais nos levou a perceber que os instantes de encontro dos pacientes com as histórias são preciosos, pela possibilidade de intervalo na jornada de sua doença. As histórias oferecem outras perspectivas, permitindo que o paciente baile entre a realidade e a fantasia, experimentando tanto aspectos saudáveis do imaginário, necessários à sua cura, quanto uma aproximação aos sentimentos árduos provocados pela doença, necessários à sua integridade.

Já na comunidade, o trabalho desenvolvido a partir das histórias permite o aprofundamento do universo pessoal das crianças e adultos envolvidos. A sabedoria contida nas histórias tradicionais dos povos, por si só, produz um efeito, sobre o qual não temos um controle absoluto, pois as histórias agem em diferentes níveis da sensibilidade, desta forma, permitem às pessoas criarem suas próprias relações com a vida. As atividades de desdobramento propostas a partir das histórias (desenhos, brincadeiras, relaxamentos, cantigas), trazem à tona a maneira peculiar com que cada um entra em contato com as imagens trazidas pelas histórias. As colocações individuais dentro do grupo de trabalho são ouvidas atentamente e valorizadas. A partir desta valorização, cada qual vai podendo resgatar sua própria voz, assumindo sua singularidade.

As histórias criam uma ambiente de fertilidade, gerando novas experiências, em universos próximos ou distantes, oníricos ou reais, silenciando as crianças, num raro momento de deleite e concentração.

As histórias também restauram a possibilidade do sagrado e do encantamento, com sua magia. Quando ouço uma história contada ou quando as leio nos livros, o tempo pára e tudo se altera. Meu ritmo transforma-se... Fico solta no espaço, remeto-me a situações de envolvimento profundo, fico tão entregue que tudo em volta some e só aquilo me transporta, envolve-me, devolve-me a mim mesma. É um momento religioso, no sentido de nossa re-ligação com nosso mundo interior. É um momento que religa nosso ser com o Todo.

Ao longo do tempo, em nossa sociedade, fomos perdendo muitos rituais do cotidiano e de passagem. Campbell conta que quando era criança, usava calças curtas e, ao tornar-se rapaz, ganhou calças longas. Como isto foi importante para ele! Foi a consagração de uma mudança de papel dentro de sua comunidade, o reconhecimento de seu crescimento e de uma etapa de seu desenvolvimento.

Atualmente, nossa sociedade está necessitando de rituais compartilhados em grupo. Mesmo dentro dos pequenos núcleos familiares urbanos, rituais simples, como o almoço e o jantar, têm ficado cada vez mais rarefeitos pela velocidade cotidiana e a sobrecarga de afazeres. Quando as pessoas estão juntas, são tantos os estímulos externos (consumo, computador, televisão, etc) que o contato entre elas torna-se superficial. A importância dos rituais cotidianos é estreitar os vínculos, é compartilhar experiências, é confrontar opiniões, é produzir aproximações e rompimentos, é comungar a vida!

As sociedades primitivas conservam muitos rituais e um deles é contar histórias. O momento das histórias é visto como uma forma de transmissão do conhecimento, de entretenimento e de comunhão.

Através dos contos de tradição oral, contos de sabedoria popular transmitidos de geração em geração através dos tempos, as crianças são levadas numa direção, com uma intenção, um sentido. Vão construindo aos poucos a paisagem, o rosto de cada personagem, a intensidade das cores. Vão criando sua própria história, guiadas pela voz do contador. Esta experiência singular de imaginar fica nítida nas descrições dos personagens e nas imagens; cada um os imagina de uma maneira. Geralmente, a história determina as qualidades dos personagens, mas o colorido pode ser muito variado: as características, os detalhes, os aromas... O imaginário de cada criança traz detalhes bastante pessoais. Após escutar uma história de caçador, uma criança disse: "Este caçador adorava comer macarrão e roncava muito!"

Tenho observado muitos exemplos como este. Em um trabalho realizado como professora de Artes da Escola Vera Cruz, onde em muitas situações utilizo os contos tradicionais como uma de minhas possibilidades de ensino, propus a um grupo de 1a série, crianças de sete anos, o desenho e a descrição de atributos do personagem principal da história: Chico Rei. Chico Rei, foi um rei africano que, perdendo uma batalha em sua terra natal, foi escravizado e trazido ao Brasil. Um homem que, por não ter perdido sua dignidade, reconquistou sua liberdade, a de sua família e a de seus amigos.

Esta proposta foi desenvolvida dentro de uma seqüência na qual estudávamos sobre as várias culturas que deram origem à cultura brasileira. Neste momento, estudávamos a África.

É importante ressaltar que, em meu encaminhamento deste trabalho, explicitei que às crianças que trouxessem para seu desenho tudo o que viram durante minha narrativa: onde estava o personagem; os objetos que compunham a cena; o clima de cada momento; os gostos do personagem; seu temperamento.

Observando estes desenhos, fica nítida a singularidade da concepção de cada criança. Manoela, por exemplo, trouxe os elementos que ela conhece da cultura negra através de imagens que reportam a um estilo musical, o "reggae". Os personagens estão soltos no ar, como se estivessem dançando. Tem muitos guardados escondidos e espalhados pelo chão: são os tesouros de Chico. João colocou-se um desafio diferente. Reportou-se às figuras das cartas de baralho, que aparecem sozinhas e sua preocupação com elas foi tão envolvente que a representação de Chico ficou em segundo plano. Jacques integra a escrita ao desenho, embora isto não tenha sido proposto. É como se ele quisesse afirmar a personalidade de seu Chico, registrando suas características. Ressalta a cor da pele, negra, diferentemente de Manoela e João. Chico ocupa o centro do desenho, estabelecendo uma simetria na composição. Já Tales ocupa o papel criando diversos focos de atenção para o olhar, numa linha diagonal que propõe em seu desenho, entre o aparelho de som, Chico e o cesto de frutas. Isa trás em sua produção um fato curioso: a personagem que está atrás de Chico é muito parecida com ela mesma, embora ela não tenha explicitado este fato.

Quando estamos em grupo, passeando todos pela mesma história, os enredos nos unem por um instante. Através daquela aventura, estamos juntos, não importa se nos conhecemos ou não. No momento de escutar, as diferenças se apaziguam, para juntos, trilharmos o mesmo caminho. Neste grupo, por exemplo, todos estão envolvidos com a figura de Chico Rei. Entretanto, cada criança lhe atribui características próprias, a partir de seu repertório pessoal.

A estruturação de meus trabalhos com os contos tradicionais, inclusive as propostas de caracterização dos personagens teve como ponto de partida o aprendizado que obtive com a professora Regina Machado, que vem pesquisando e estruturando o trabalho com os contos tradicionais há muitos anos, num percurso que tem trazido muitas possibilidades do uso destes dentro da educação.

Durante os anos como professora de sala de aula contava muitas histórias mas não me debruçava sobre este trabalho detidamente. Com Regina aprendi que um imenso universo expressivo pode se abrir a partir dos contos e vir à tona se o professor permitir e facilitar este processo. Pude perceber a partir do relato e observação de suas experiências que o uso dos contos dentro da sala de aula é precioso, uma vez que faz sentido para o universo da criança, permitindo que ela se aproxime de sua própria riqueza.

A potencialidade de uma história pode estar escondida em uma pêra, uma romã, dentro de um formigueiro. Tudo pode acontecer a partir de pão e água! O mais simples, encantador e maravilhoso pode se encontrar numa mesma estrada. Nossos sentidos se põem em alerta e, quando nos entregamos, podemos sentir os cheiros de alguns momentos, ver o por do sol de outros, sentir arrepios de aflição ou chorar de felicidade e emoção. Este despertar nos conecta com o passado e nos projeta no futuro. Tudo num mesmo tempo. Esta experiência mobiliza a memória.

Uma vez, ouvia João, amigo de meu filho Leo, contar-lhe uma história na hora de dormir. No final da história, ele disse: "acabou a história e nasceu a memória!". Achei lindo ouvi-lo dizer aquilo, pois quando uma história acaba é a lembrança dela que nasce!

Quando estamos envolvidos no universo das histórias, estabelecemos relações com nossa história pessoal, resgatando-a e, a partir de um olhar mais detido, temos a oportunidade de refletir sobre ela e transformá-la em memória. É como arejar a própria vida.

Estas possibilidades, portões que as histórias nos abrem, permitem que, em cada período de nossa vida nos alimentemos das histórias de diferentes maneiras. Quando somos crianças, encontramos nas histórias referências claras do bem e do mal, que nos confortam e nos nutrem. À medida que crescemos, aprendemos a perceber os dilemas humanos e as histórias nos permitem olharmos a vida através dos olhos emprestados do personagem. Isto desvenda um pensamento até então maniqueísta. Aos poucos, vamos percebendo que todos os personagens cabem em nós e, com isto, nos enriquecemos, e desta forma, nos reconciliamos com nossa humanidade, ao mesmo tempo em que nos mantemos alertas para os perigos da existência, nunca perdendo de vista a fé.

Foi através dos sonhos que me aproximei do Universo das histórias, dos contos da tradição oral e das biografias. A possibilidade de imaginar e experimentar outras vivências dentro de mim mesma, com um olhar secreto, enriqueceu-me muito, fez-me ter fé e acreditar na vida. Sonhar tornou-se um método de desenvolvimento. Balançava-me por várias horas por dia e experimentava sensações que a vida, até então, não me tinha proporcionado.

Meus pais sempre me respeitaram muito nessa possibilidade de permanecer em meu mundo e, ao mesmo tempo, estimulavam-me a participar da vida fora de mim mesma: os amigos, os compromissos, os estudos, as tarefas a serem cumpridas.

A educação, de uma forma geral, e a escola de maneira mais particular, mudaram muito ao longo de todos estes anos. Na educação contemporânea, comprometida com a criança, esta passou a ser compreendida em toda sua inteireza. Os conteúdos passaram a ser mais interessantes e ensinados de maneira mais estimulante. Os professores buscam compreender cada vez mais as crianças e percebem contornos mais claros.

Entretanto, é preciso lembrar que no mundo de hoje, o universo infantil sofre uma invasão brutal, através do bombardeio de informações de todos os tipos. O que por um lado pode abrir os horizontes da criança, desvendar-lhe novos mundos e trazer conhecimento, por outro pode impor um ritmo frenético, que invade seu imaginário, criando uma certa violência ao ritmo próprio de cada um, com muitos fragmentos sem conexão. Mesmo a educação com propostas mais avançadas, que entendem tanto a criança, percebem suas dificuldades e suas questões, de certa forma as invadem com muitos julgamentos: interpretações de comportamento, expectativa de um padrão de "normalidade".

Fico pensando, quantas vezes, graças a uma percepção que venho desenvolvendo nestes meus anos de professora, observo meus alunos detidamente em suas atitudes no trabalho, cada aluno dentro de um contexto de grupo, na relação com o espaço, chegando a ter a sensação de que sei exatamente como eles estão, como se o percurso interno de um ser humano pudesse ser apreendido. Talvez um educador contemporâneo que tivesse me olhado detidamente durante minha infância, ficasse preocupado e me encaminhasse a um trabalho com psicopedagogia, devido minha introspecção e dificuldades de aprendizagem. Isso poderia ter me ajudado por um lado, no sentido de me fazer aprender com mais facilidade, mas teria me tirado do meu contato profundo com o sonho, que me ajudou tanto em minhas conquistas, tanto internas quanto profissionais.

A tarefa do educador é muito complexa. Por um lado é preciso ensinar, estimular o aluno a descobrir o mundo, conhecê-lo, aprender a lidar com ele e, ao mesmo tempo, ajudá-lo a harmonizar-se dentro deste processo.

Neste sentido, o trabalho com as histórias é fundamental, pois ele preserva o segredo do imaginário. Entre o silêncio e o movimento, as imagens se constroem e cada pessoa as constrói ao seu modo, ao mesmo tempo em que são alimentadas com novas possibilidades de imagens. As histórias podem nos levar a lugares que nunca ouvimos falar antes, com descrições de paisagens que jamais vimos e sensações que nunca sentimos.

Toda a obra de arte é de certa forma uma celebração da vida ou ainda mais especificamente uma celebração do imaginário, os artistas dedicam suas vidas a concretizar os sonhos. As histórias são sonhos que se concretizam como aventuras dentro destes sonhos que alguém sonhou, destas vozes que alguém ouviu, destas imagens que vem à tona trazendo a riqueza que mora na gente sempre, desde a mais tenra idade. Certa vez, Ana, uma aluna de três anos de minha amiga Marta Mursa, então professora da escola da Vila, disse a ela: "Eu hoje li um livro e sem saber ler, eu li o que quis". Esta menina de três anos já tinha dentro de si muitos livros que precisavam de espaço para ser o que queriam, para enriquecer e ser enriquecida. Dentro dela, como diria Marta, já havia um manancial de possibilidades.

As histórias usam a fantasia para transmitir ensinamentos, construir valores, trazer as riquezas, dar exemplos, desmistificar as polaridades das nossas vidas, desenhando, dentro do silêncio, curvas sinuosas através de seu ritmo e encantamento.



Stela Barbieri








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Stela Barbieri é artista, contadora de histórias, autora e educadora. Dirige o bináh espaço de arte.