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Processo de Criação - Educação e Arte
Seminário: “Entrelugares do corpo e da arte”

Stela Barbieri

Em primeiro lugar, quero agradecer por ter tido a honra de participar do seminário e, depois de vinte e quatro anos, voltar à Unicamp, onde vivi muitas experiências boas e conheci pessoas maravilhosas.  
Início falando do ar — do vento, do sopro, que está entre o céu e a terra, respiração, entre mim e você; que conecta e permeia todos nós, vida invisível. O ser aéreo é livre!
Ando muito inquieta com a questão do ar. Do ar, do vento, do sopro. O ar que une e separa o céu e a terra. Como uma respiração. Ando intrigada com uma coisa que é óbvia, mas que sempre me surpreende quando penso nela: o ar que eu respiro é o mesmo que todas as outras pessoas respiram. É algo que nos conecta, que nos deixa ligados, mesmo que não tenhamos consciência disso. Eu respiro o mesmo ar que as pessoas de quem não gosto, as que acho que têm mau hálito, aquelas que amo; que as plantas e animais que não conheço; que todos os seres. Isso foi me fazendo pensar nessa conexão imensa que nos liga a todos e a tudo, o ar que permeia e conecta a todos nós. Invisível, está presente, emana no ambiente uma energia que também não vemos e sai de todos nós.

A respiração, que traz de fora para dentro o ar e leva de dentro para fora o mesmo ar, que nunca é o mesmo, pois sai diferente depois de circular por nosso corpo, é similar ao processo de criação: do interior para o exterior e vice-versa. O que é, então, o processo de criação? Respiração? Transpiração?

Falamos sempre a partir de nossas experiências ou permeados por elas. Walter Benjamin dizia que em cada gesto nosso está toda a nossa biografia. Pois pretendo falar do processo de criação do ponto de vista de quem é mulher, mãe, educadora, artista, contadora de histórias, gestora, fazendo isso tudo ao mesmo tempo, às vezes sem fôlego.

A cada coisa que fazemos, vem à tona a memória de tudo o que já sentimos e realizamos. As experiências de uma área de nossa vida tocam as outras áreas e, como a respiração, circulam sempre em movimento. Os pensamentos circulam, os projetos circulam, os desejos circulam. As ideias estão no ar, são fluidas! Elas percorrem a nossa vida! E constroem narrativas.

Tantas histórias de origem trazem a imagem de que a vida começa com um sopro! O ar guarda a memória de todas as respirações, de todas as queimadas, guerras, primeiros e últimos suspiros... A memória da humanidade também está no ar! As crianças captam isso.

Ao mesmo tempo, nas narrativas, o ar é usado quando queremos expressar um susto: “Ele ficou sem ar!”. Ou exaustão: “Ele chegou ofegante!”. Ou: “Eu sentia sua respiração próxima!”, para exprimir suspense, expectativa. Esses são recursos frequentemente usados nas histórias para trazer a expressão de um momento. O ar, algo vital.

As crianças me dão “arejamento” e influenciam diretamente todo o meu percurso criador. Conviver com crianças me traz novos pensamentos e percepções, me dá vitalidade. Tanto na educação como na arte pode haver muita vitalidade, mas muita desvitalização também. Quando escolarizamos a arte, ou quando enrijecemos a cultura, criamos núcleos de desvitalização, que vão contaminando os lugares de infelicidade. E podemos sentir isso no ar! Quando enrijecemos a educação, a alegria não entra mais na escola, ou não entra mais em nossa vida, enfim... Acho que vamos perdendo essa vitalidade que as crianças têm!

Essa história com as crianças, com a arte, começou muito cedo na minha vida. Quando eu tinha 14 anos, fui ser baby-sitter. Nessa idade, eu não tinha a menor ideia de como lidar com um nenê! Mas tinha um encantamento pela vida que está começando, que é sensível, que chora sem que você saiba direito o porquê... Também é misterioso! Desse mistério que há no ar, que há no mundo, que há dentro das pessoas, como pensamento — não sabemos o que vai dentro do pensamento de alguém, a menos que a pessoa conte. Às vezes, sentimos na expressão da pessoa um tipo de pensamento — uma carinha esquisita que expressa um tipo de pensamento —, mas o pensamento e a imaginação são de uma região sagrada do mistério! Eu posso imaginar o que quiser e ninguém tem nada a ver com isso! E isso é uma maravilha da liberdade!

Tem muita gente que, fazendo o que faz na vida, nas mais variadas profissões, inventa, cria, pensa a vida como artista, pois tanto as crianças como os artistas acreditam na voz do impossível, no território da liberdade, inventam façanhas mirabolantes, urgências que precisam realizar e ainda criam condições para que tudo aconteça!

Os artistas e as crianças fazem muito esforço para concretizar obras que são pura realização: colocar burros ou urubus dentro de uma instituição, inventar situações que para qualquer pessoa poderiam ser descabidas... Crianças carregam areia de um lado para o outro, se esforçam para fazer uma montanha, simplesmente porque desejam.

Isso é o que mais me interessa no universo das crianças e dos artistas: acreditar em ideias, em intuições, em imagens, em mobilizações internas — sem sentido aparente, mas com grande potência mobilizadora.

Essa convivência com as crianças e com a arte é o que alimenta minha criação em todas as áreas da vida. Acreditar na voz do impossível, na voz que fala. Essa é a voz da intuição e pode revitalizar qualquer área de nossa vida: o jeito de arrumar as gavetas e a casa, até a maneira de inventar uma aula ou nossa relação amorosa. Qualquer coisa pode vir dessa região do impossível, dessa região que fala coisas que a gente nem pensaria em realizar. Se ouvíssemos mais nossa intuição, poderíamos ampliar as perspectivas de vitalidade, de felicidade!
O que nos move? O que nos impulsiona a fazer alguma coisa ou a ter curiosidade por algo? A vida fugidia, rápida e imersiva nos engana com suas demandas insólitas e nos faz olhar para muitas situações como se fossem absolutas e fundamentais.

Vou contar uma história que se chama “Iazul, iazul, iazul”:
      
Sente-se aqui, meu amigo! Esquece das agruras da alma humana, esquece dos problemas do dia a dia, e vem ouvir a maravilhosa história “Iazul”, contada pelos árabes.

Era uma vez um jovem rei que tinha perdido seus pais ainda criança e que, desde então, tinha Sári, o sincero, como conselheiro. Sári era um servo fiel e, sempre que o rei precisava, estava lá para ajudá-lo.
Certo dia, Sári foi dormir mais cedo. Estava muito cansado. Com a idade avançada, já não conseguia mais trabalhar pesado por muito tempo. Quando se preparava para deitar, foi chamado com urgência: o jovem rei desejava vê-lo imediatamente. Sentou-se na cama, colocou os chinelos e falou: “Ai, ai, ai! Por que estão me chamando desta vez?” Ele, então, pôs-se em pé em cima dos chinelos e disse suspirando: “Mas bem agora que eu vim descansar?”.

Foi, então, pelos corredores do palácio, arrastando os pés até chegar ao grande salão nobre. O rei estava sentado em seu trono, cabisbaixo. Tinha nas mãos um anel que havia ganhado de presente. Um anel velho e carcomido.

“Sári, ganhei este presente! Não sei se é magia negra ou magia branca!”, disse o jovem rei. “Mas sei que ele possui um certo... um certo mistério que me incomoda. Você poderia decifrar o que dizem estas inscrições no anel?”.

Sári pegou o anel. Estava bem sujo! Esfregou-o na roupa, olhou para ele e disse:
“Ah, Senhor! Este anel é realmente mágico! Este anel é capaz de fazer uma pessoa que está nos píncaros da glória colocar os pés no chão. Este anel é capaz de fazer uma pessoa que está sucumbindo à tristeza pôr os pés no chão”.

“Que coisa esquisita, Sári!”, disse o rei. “Um anel que é capaz de fazer uma pessoa triste ficar alegre, e uma alegre ficar triste! Não estou achando graça nenhuma nisso!”.

Sári continuou: “Não, Senhor! Este anel é capaz de fazer quem está no fim do caminho saber que poderá ter um novo e longo caminho pela frente, e uma pessoa que está no começo do caminho saber que sua trajetória será imensa”.

“Ai, Sári! Enigmas a essa hora da noite? Vamos logo! Diga-me o que está escrito aí nesse anel!”

Ele disse: “Neste anel está escrito: ‘Iazul, iazul, iazul’. ‘Tudo passa, tudo passa, tudo passa’. Então, meu Senhor, o senhor deve saber que, quando estiver perdendo a guerra, isso passará, mas que, quando vencer a guerra, isso também passará!”.

Desde aquele dia, o rei se tornou o mais sábio de todos os homens. Porque ele soube que precisava estar presente, pois tudo passa. A vida fugidia passaria para ele também, como para todos os outros. E Sári voltou ao seu quarto para dormir. E o rei limpou bem o anel, colocou-o no dedo e nunca mais se esqueceu disso.

Quando olho para a arte e para as crianças, fico pensando que só temos a chance de momentos de conexão, pois tudo passa, rápido como um sopro. Como o amor pode passar, como a vida passa. Não sabemos se vamos morrer amanhã, depois de amanhã... Mas, quando as crianças estão muito concentradas no que estão fazendo, parece que trazem a eternidade inteira com elas. Ficam entregues, como se aquilo fosse a coisa mais importante que têm a fazer na vida, como se fosse vital. Elas não pensam que aquilo está passando — aproveitam absolutamente tudo. Não estão preocupadas com mais nada. A alma está encaixada no corpo e a eternidade está ali — a eternidade daqueles que criam. A eternidade única, daquele momento.


As rotas de ar, para mim, começaram nesta cadeira de balanço. Desde muito pequena, eu ficava balançando. Umas seis horas por dia.

Minha mãe achava isso supernormal. Lá em Araraquara não tinha terapeuta. Se fosse hoje, já encaminhavam a criança para a terapia! Na minha família ninguém me incomodava. Eu sentava no balanço e balançava a milhão por hora. Atualmente eu tenho balançado mais de carro, andado a pé, feito outras coisas, balançado no balanço mesmo. Balançar para mim é vitalidade!

Na minha infância, o balanço era intercalado com produzir bolos de terra, correr atrás das galinhas, fazer cabanas. Quando comecei a conviver com as crianças, tive uma identificação absoluta com elas. Elas são do mesmo universo que eu, falam diretamente comigo. Tem gente que se identifica com adolescente, tem gente que se identifica com idoso. Eu tenho uma identificação total com criança bem pequena! Elas inventam mundos, inventam territórios. Eu ficava horas fazendo essas invenções, criava uns filmes mentais que ficavam passando pela minha cabeça.

Já em idade adulta, tive um terapeuta muito bom que se chamava Dorneles. Ele me dizia: “Stela, agora está na hora de os sonhos da cadeira de balanço virem para o mundo”.

As coisas começaram a acontecer a partir daí. Foi da cadeira de balanço que surgiu o universo das histórias, o universo da arte. Essa cadeira de balanço, que ainda mora lá em casa, foi virando uma incubadora de ideias que foram se transformando em trabalhos de arte, histórias, aulas, projetos.

Minhas esculturas em vidro, por exemplo, nasceram de minha curiosidade sobre o sopro, que transforma uma bola de fogo, feita de uma massa incandescente, em vidro. Eu fui atrás dessa possibilidade. Como é que massa de fogo vira vidro? Isso foi me deixando encantada, essa coisa da expansão da matéria, que vai resfriando e vai ganhando outra forma... Fazer esculturas pela expansão me fez pensar em como desenhar também expandindo a matéria, contraindo a matéria, ocupando o espaço. Comecei a fazer desenhos que iam ocupando a parede e, depois, desenhos em módulos que iam ocupando o espaço.

Quando comecei meu trabalho no Instituto Tomie Ohtake, pensei: como levar o processo de criação da arte para uma instituição cultural? Como levar isso vivo, sem ser burocrático?
Um dos projetos que realizamos foi o “Ação e Pensamento”: ao longo de seis meses, enquanto um artista desenvolvia um projeto de trabalho pessoal, um educador dava aulas sobre arte contemporânea, tendo como janela de entrada o trabalho daquele artista. Os professores e os alunos de escolas públicas e privadas tinham aulas juntos, des-hierarquizando as relações com a arte, vivendo uma experiência compartilhada.

Alunos e professores tendo aulas juntos: era ao mesmo tempo desafiador e cooperativo. As diferenças se suspendem por um instante quando vivemos algo significativo juntos.

Inventar algo sozinho é bom. Mas inventar junto, compartilhando, trocando ideias, é ainda melhor!

Trabalhar em equipe exige muito de nós. Ao ouvir o outro, nos deparamos com nossos limites. É preciso ceder, mesmo que não concordemos com algo. Para mim foi um aprendizado acolher as demandas e me ver em meio a embates entre tantos componentes de uma mesma equipe.

Viver deslocamentos e diálogos em Educação exige muita gentileza. Amorosidade faz toda a diferença. Receber as pessoas com um café gostoso, com uma bolachinha saborosa, em um ambiente com intenção. A Anne Marie, por exemplo, recebeu as crianças na natureza. A natureza já está ali! Mas numa cidade como São Paulo, como é que se faz para trazer essa vida? Cada um inventa um jeito, mas acho que o acolhimento é fundamental.

Com o tempo, fomos ampliando o número de cursos para atender a uma diversidade maior de públicos. Começamos a realizar laboratórios para crianças, sempre a partir das ideias compartilhadas pela equipe da Ação Educativa. Desde o início do Instituto, oferecemos cursos para todas as pessoas interessadas, de qualquer profissão. Nosso núcleo de cursos chama-se “Espaço do Olhar”.

Em momento nenhum há intervenção do Instituto na aula do artista/professor. A sua criação é completamente respeitada. Ninguém dá palpite no que ele faz em sua aula. Ele apresenta um projeto de curso e tem a liberdade de fazer suas aulas juntamente com os alunos. Se estamos trabalhando em equipe, trocamos ideias. A gente conversa sobre perspectivas de caminhos, mas é a criação do professor que precisa acontecer.

A equipe de educadores que trabalha com atendimento ao público realiza, também, encontros de formação para professores e ateliês. Existe todo um cuidado para organizar os materiais para cada ateliê, com a intenção de oferecer um “banquete” para que as pessoas possam criar.

Sempre que possível, um material educativo relativo a cada exposição é produzido. Esse material, chamado de “Caderno do Olhar”, composto de textos desencadeados por perguntas, tem como objetivo servir como fonte para aprofundamento de conversas e reflexões, relativas à mostra em questão, entre professores e estudantes quando retornam à sua escola ou ONG.

Nossa equipe de trabalho é muito viva, cheia de alegria. Um grupo feliz, que ocupa espaço. E isso incomoda um pouco no mundo da arte, que é tão sisudo, tanto quanto o mundo da educação.

Eu trouxe este poema do João Cabral que fala sobre isso:

O que vive, incomoda de vida
O silêncio, o sono, o corpo
que sonhou corta-se, roupas de nuvens
O que vive choca
Tem dentes, arestas, é espesso
O que vive é espesso
Como um cão, um homem
Como aquele rio.

O que é vivo faz barulho, é turbulento, não é quieto. É movimento. O que vive tem a presença do corpo, tem a presença do gesto, do grito, da palavra, do confronto. E a ideia é que esse trabalho seja vivo e, portanto, tenha todas essas coisas.

Na Bienal de São Paulo a escala é outra – trabalhar com grande público em pequenos grupos e de novo minha intenção é criar uma ação colaborativa onde um grande número de pessoas seja atendido de forma artesanal.

Uma das perguntas que a gente fez em nosso material educativo é: “Por que calar?” E as pessoas conversam sobre essas questões, entre si, em duplas, em trios. E aí a gente faz movimentos em grandes auditórios, constrói infláveis em pequenos grupos, faz mapas daquilo que está pensando e se encontra em pequenas rodinhas. Então, o encontro é a coisa mais importante! Para falar de arte, para falar de vida. Isso é tão bom!

Na verdade, o que a gente mais discute é isto: quando a gente pensa em arte, a gente pensa em quê? Tem um artista que participou da Bienal que se chama Alberto Greco. Ele põe o nome dele nas cenas de arte que fazem parte do cotidiano e fotografa, porque ele diz que a arte está no olho de quem vê. Tem um trabalho, por exemplo, em que uma mulher estende panos no varal, depois de ter lavado roupa, e aí ele assina: Alberto Greco. Tem, também, um burrico passando na estrada, e ele assina: Alberto Greco. Depois, tem um homem em cima de uma árvore, e ele assina: Alberto Greco. Na verdade, a arte está além de um objeto, ela está em tudo o que a gente faz.

Muito obrigada!



Stela Barbieri








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Stela Barbieri é artista, contadora de histórias, autora e educadora. Dirige o bináh espaço de arte.