Processo de Criação - Educação e Arte
Stela Barbieri
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As rotas de ar, para mim, começaram nesta cadeira de balanço. Desde muito pequena, eu ficava balançando. Umas seis horas por dia.
Minha mãe achava isso supernormal. Lá em Araraquara não tinha terapeuta. Se fosse hoje, já encaminhavam a criança para a terapia! Na minha família ninguém me incomodava. Eu sentava no balanço e balançava a milhão por hora. Atualmente eu tenho balançado mais de carro, andado a pé, feito outras coisas, balançado no balanço mesmo. Balançar para mim é vitalidade!
Na minha infância, o balanço era intercalado com produzir bolos de terra, correr atrás das galinhas, fazer cabanas. Quando comecei a conviver com as crianças, tive uma identificação absoluta com elas. Elas são do mesmo universo que eu, falam diretamente comigo. Tem gente que se identifica com adolescente, tem gente que se identifica com idoso. Eu tenho uma identificação total com criança bem pequena! Elas inventam mundos, inventam territórios. Eu ficava horas fazendo essas invenções, criava uns filmes mentais que ficavam passando pela minha cabeça.
Já em idade adulta, tive um terapeuta muito bom que se chamava Dorneles. Ele me dizia: “Stela, agora está na hora de os sonhos da cadeira de balanço virem para o mundo”.
As coisas começaram a acontecer a partir daí. Foi da cadeira de balanço que surgiu o universo das histórias, o universo da arte. Essa cadeira de balanço, que ainda mora lá em casa, foi virando uma incubadora de ideias que foram se transformando em trabalhos de arte, histórias, aulas, projetos.
Minhas esculturas em vidro, por exemplo, nasceram de minha curiosidade sobre o sopro, que transforma uma bola de fogo, feita de uma massa incandescente, em vidro. Eu fui atrás dessa possibilidade. Como é que massa de fogo vira vidro? Isso foi me deixando encantada, essa coisa da expansão da matéria, que vai resfriando e vai ganhando outra forma... Fazer esculturas pela expansão me fez pensar em como desenhar também expandindo a matéria, contraindo a matéria, ocupando o espaço. Comecei a fazer desenhos que iam ocupando a parede e, depois, desenhos em módulos que iam ocupando o espaço.
Quando comecei meu trabalho no Instituto Tomie Ohtake, pensei: como levar o processo de criação da arte para uma instituição cultural? Como levar isso vivo, sem ser burocrático?
Um dos projetos que realizamos foi o “Ação e Pensamento”: ao longo de seis meses, enquanto um artista desenvolvia um projeto de trabalho pessoal, um educador dava aulas sobre arte contemporânea, tendo como janela de entrada o trabalho daquele artista. Os professores e os alunos de escolas públicas e privadas tinham aulas juntos, des-hierarquizando as relações com a arte, vivendo uma experiência compartilhada.
Alunos e professores tendo aulas juntos: era ao mesmo tempo desafiador e cooperativo. As diferenças se suspendem por um instante quando vivemos algo significativo juntos.
Inventar algo sozinho é bom. Mas inventar junto, compartilhando, trocando ideias, é ainda melhor!
Trabalhar em equipe exige muito de nós. Ao ouvir o outro, nos deparamos com nossos limites. É preciso ceder, mesmo que não concordemos com algo. Para mim foi um aprendizado acolher as demandas e me ver em meio a embates entre tantos componentes de uma mesma equipe.
Viver deslocamentos e diálogos em Educação exige muita gentileza. Amorosidade faz toda a diferença. Receber as pessoas com um café gostoso, com uma bolachinha saborosa, em um ambiente com intenção. A Anne Marie, por exemplo, recebeu as crianças na natureza. A natureza já está ali! Mas numa cidade como São Paulo, como é que se faz para trazer essa vida? Cada um inventa um jeito, mas acho que o acolhimento é fundamental.
Com o tempo, fomos ampliando o número de cursos para atender a uma diversidade maior de públicos. Começamos a realizar laboratórios para crianças, sempre a partir das ideias compartilhadas pela equipe da Ação Educativa. Desde o início do Instituto, oferecemos cursos para todas as pessoas interessadas, de qualquer profissão. Nosso núcleo de cursos chama-se “Espaço do Olhar”.
Em momento nenhum há intervenção do Instituto na aula do artista/professor. A sua criação é completamente respeitada. Ninguém dá palpite no que ele faz em sua aula. Ele apresenta um projeto de curso e tem a liberdade de fazer suas aulas juntamente com os alunos. Se estamos trabalhando em equipe, trocamos ideias. A gente conversa sobre perspectivas de caminhos, mas é a criação do professor que precisa acontecer.
A equipe de educadores que trabalha com atendimento ao público realiza, também, encontros de formação para professores e ateliês. Existe todo um cuidado para organizar os materiais para cada ateliê, com a intenção de oferecer um “banquete” para que as pessoas possam criar.
Sempre que possível, um material educativo relativo a cada exposição é produzido. Esse material, chamado de “Caderno do Olhar”, composto de textos desencadeados por perguntas, tem como objetivo servir como fonte para aprofundamento de conversas e reflexões, relativas à mostra em questão, entre professores e estudantes quando retornam à sua escola ou ONG.
Nossa equipe de trabalho é muito viva, cheia de alegria. Um grupo feliz, que ocupa espaço. E isso incomoda um pouco no mundo da arte, que é tão sisudo, tanto quanto o mundo da educação.
Eu trouxe este poema do João Cabral que fala sobre isso:
O que vive, incomoda de vida
O silêncio, o sono, o corpo
que sonhou corta-se, roupas de nuvens
O que vive choca
Tem dentes, arestas, é espesso
O que vive é espesso
Como um cão, um homem
Como aquele rio.
O que é vivo faz barulho, é turbulento, não é quieto. É movimento. O que vive tem a presença do corpo, tem a presença do gesto, do grito, da palavra, do confronto. E a ideia é que esse trabalho seja vivo e, portanto, tenha todas essas coisas.
Na Bienal de São Paulo a escala é outra – trabalhar com grande público em pequenos grupos e de novo minha intenção é criar uma ação colaborativa onde um grande número de pessoas seja atendido de forma artesanal.
Uma das perguntas que a gente fez em nosso material educativo é: “Por que calar?” E as pessoas conversam sobre essas questões, entre si, em duplas, em trios. E aí a gente faz movimentos em grandes auditórios, constrói infláveis em pequenos grupos, faz mapas daquilo que está pensando e se encontra em pequenas rodinhas. Então, o encontro é a coisa mais importante! Para falar de arte, para falar de vida. Isso é tão bom!
Na verdade, o que a gente mais discute é isto: quando a gente pensa em arte, a gente pensa em quê? Tem um artista que participou da Bienal que se chama Alberto Greco. Ele põe o nome dele nas cenas de arte que fazem parte do cotidiano e fotografa, porque ele diz que a arte está no olho de quem vê. Tem um trabalho, por exemplo, em que uma mulher estende panos no varal, depois de ter lavado roupa, e aí ele assina: Alberto Greco. Tem, também, um burrico passando na estrada, e ele assina: Alberto Greco. Depois, tem um homem em cima de uma árvore, e ele assina: Alberto Greco. Na verdade, a arte está além de um objeto, ela está em tudo o que a gente faz.
Muito obrigada!
Stela Barbieri