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Pragmatismo poético

Stela Barbieri


Estávamos no Centro Educacional Unificado (CEU) Casa Blanca, num encontro da Bienal, conversávamos com 450 professores da Rede Municipal de Educação, minha equipe e eu. Os microfones em movimento davam vigor à conversa sobre os modos de viver e a arte, chegando a momentos de embate bastante intensos. Falávamos sobre o trabalho Pare, repare, prepare, da dupla Allora e Calzadilla. Essa performance surpreendente reúne seis músicos que se revezam tocando, de dentro do piano, o quarto movimento da Nona sinfonia de Beethoven.

Um professor de música ali presente levantou-se e perguntou aos seus colegas: - Vocês conhecem a Nona sinfonia de Beethoven? - Pouquíssimos conheciam, o que fez com que oferecesse – Posso cantar para vocês?

À vontade dos professores, cantou o quarto movimento inteiro em alto e lindo tom. A audição espontânea, sem ensaios ou protocolos, veio inesperada, levando a plateia a um silêncio cúmplice e receptivo que, depois dos aplausos, continuou ocupando o espaço.

Esta cena me fez pensar como é maravilhoso quando alguém se sente à vontade e com liberdade para se colocar. Então me perguntei: como garantir esse espaço nas instituições culturais?

Durante muito tempo os museus e instituições culturais estiveram distantes do público, por uma crença de alguns de que a arte é para poucos.

Vivemos um momento em que essas instituições se abriram para receber  diversidade e volume de pessoas, tendo, para isso, desenvolvido maneiras específicas de lidar com cada público. Os scripts e planejamentos concebidos para trabalhar com exposições são em vários momentos muito programados, pois para acolher um grande número de pessoas é necessário organização e preparo.

Corre-se o risco de o excesso de pragmatismo na orientação do trabalho deixar pouco espaço para a escuta e desvios salutares que podem acontecer num encontro.

Me pergunto de que forma podemos abrir espaço para novas narrativas e intervenções do público? Como criar um ambiente que propicie a ação poética, no qual as pessoas se sintam à vontade e com liberdade de se colocar perante as obras de arte e perante si mesmas?

Creio que o grande desafio é integrar competência para ter espaços bem cuidados, equipe preparada, infraestrutura, rigor conceitual e ao mesmo tempo deixar frestas para o inusitado. O envolvimento e a presença de cada participante nesta ação podem catalisar um encontro vivo e a criação de um espaço com afeto, onde todos se coloquem para além do que está proposto, investigando e se perguntando sobre o sentido da vida contemporânea e da arte. Isso acontece em diálogos, ações poéticas, jogos estéticos e outras invenções que se originam a partir dos próprios trabalhos de arte.

Os artistas contemporâneos inventam outros sistemas de troca nos deixando pistas de como lidar com variáveis subjetivas, como o desejo, o afeto e a liberdade, algumas vezes propondo intercâmbios possíveis em ações coletivas.

Podemos ver isto na obra de Antonio Vega Macotela, que durante três anos e meio, realizou o trabalho Time Divisa. O artista visitou os detentos da unidade Carcerária de Santa Marta Acotila, na Cidade do México. Semanalmente, fez, junto a eles, aproximações e intercâmbios que se concretizaram em 365 trocas, cada uma representando um dia do ano. Fora da prisão, o artista realizava o desejo de um detento, e este, do lado de dentro, fazia um projeto artístico encomendado.

Este trabalho, entre tantos outros feitos atualmente, apresenta uma maneira de estabelecer uma interlocução de criação colaborativa, inventando um sistema poético de troca. E, então, me pergunto: que novos caminhos de diálogos com a arte podem ser inventados e suscitados pela própria arte?





Stela Barbieri








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Stela Barbieri é artista, contadora de histórias, autora e educadora. Dirige o bináh espaço de arte.