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Stela Barbieri
Trabalhar na 29ª Bienal de São Paulo foi como passar três meses em alto mar, em meio a grandes ondas, sem marolas, e um vento intenso a favor. Uma mostra com 158 artistas, 850 obras e uma equipe de 382 profissionais para atender um público de 500 mil pessoas. Para vencer tal empreitada, foi necessário procurar ter clareza na definição de rotas desde o início do projeto. Uma bienal é sempre um grande desafio: a localização de um assunto, o desenvolvimento de um argumento, a criação de um projeto, a configuração de um território, o espaço expositivo, as passagens e deslocamentos, os lugares de encontro com a obra, a recepção do público, o que evidenciar em cada trabalho, as relações a serem estabelecidas. Como receber bem as pessoas? Como compartilhar as intenções do trabalho com todos os envolvidos na mostra? Como criar espaço para experiências significativas? Iniciamos um ano antes os preparativos e concepções do que seria a mostra. O trabalho começou na casa de Miguel Chaia, com todo o acolhimento. Agnaldo Farias e Moacir dos Anjos estavam criando a plataforma curatorial. Além dos curadores-chefes, participavam das reuniões Miguel Chaia, Justo Werlang, Heitor Martins, André Stolarski, Marta Bogéa, Marta Magnus e eu. Todos nós, juntos, discutíamos o que seria essa edição da mostra e foi ali que o projeto inicial tomou forma, em volta de uma mesa, onde a ideia dos terreiros como espaços de encontro e conceitos que permeariam a exposição foi criada pela curadoria geral. Enquanto nos reuníamos, outros membros da diretoria e da equipe da Bienal estavam trabalhando também para a realização da 29a. Com o desenvolvimento do projeto, Emilio Kalil integrou a diretoria, junto a uma nova equipe de produção, colaborando efetivamente para que a mostra acontecesse. O primeiro desafio para a presidência e diretoria foi pôr a casa em ordem – pagar dívidas e reorganizar a equipe. A curadoria geral teria pouco tempo para a definição de artistas e muito a desenvolver numa estrutura que precisava de impulso. Para o Educativo, os desafios que se apresentavam eram: atender um público de enormes proporções falar com muitas pessoas, considerando cada uma em sua singularidade formar uma equipe emancipada, com presença efetiva para propor e resolver problemas estudar e avaliar permanentemente o trabalho evidenciar sentidos e questões da mostra que pudessem dialogar com os sentidos da vida de cada um resgatar e aprender com a história dos educativos de bienais anteriores criar redes de colaboração desenvolver parcerias com instituições culturais de São Paulo, órgãos públicos, escolas e ONGs deslocar conceitos: a Bienal ir à cidade elaborar um material educativo potente desenvolver cursos para professores e educadores (de instituições não formais) realizar encontros e cursos para professores em diferentes lugares realizar um curso consistente para os educadores que fariam as visitas orientadas comunicar reflexões e ações. Dialogar com professores e educadores pareceu ser o primeiro passo para uma entrada significativa nas escolas, nas ONGs e nas comunidades. Ao criarem os terreiros, que davam nome às plataformas conceituais e aos espaços de encontro, os curadores-chefes reforçaram sua proposta de refletir sobre arte e política à luz da poesia, como sugere o nome da exposição. Possibilitando ao público diferentes entradas para leitura da mostra, criaram novos ares, espaços para pensar a arte com um frescor que pôde, a cada momento, revelar novas significações. Para o Projeto Educativo, a proposta curatorial propiciou uma oportunidade rara de interlocução com as pessoas e as obras, gerando diálogos entre os integrantes da equipe e o público, facilitando aproximações com a arte, estabelecendo relações entre a arte e a vida cotidiana, formulando questões, problematizando-as e discutindo a essência do trabalho de cada artista e as urgências da vida contemporânea. Nas exposições de arte, o Educativo está a serviço da vida, da relação entre arte e público que tonifica e tensiona uma exposição. O desafio de atender muitas pessoas com a intenção de escutar e dialogar com cada uma delas tem um misto de objetividade absoluta e subjetividade à flor da pele. A logística para receber o público precisa estar muito bem estruturada. Decisões precisam ser tomadas a todo momento. Ao mesmo tempo, as pessoas precisam ser ouvidas em suas necessidades, reflexões e construção de sentidos, sejam elas da equipe ou do público. A percepção dos acontecimentos sempre foi a bússola dessa navegação. A intenção era de que as pessoas pudessem se encontrar umas com as outras, que tivessem as melhores condições para isso e que esse corpo coletivo pudesse ter uma irradiação. A ideia era que a conversa se desse de pouco em pouco, como o fogo de uma roda de fogueira, que se espalha e acende outras fogueiras. Esse fogo é a conversa, motor da navegação. Para montar uma equipe eficiente foi necessário chamar pessoas que acreditassem nesse modo de orientar o barco e que tivessem experiência. Os primeiros encontros na Bienal foram para elaborarmos o Material Educativo junto à equipe curatorial, num trabalho coletivo de desenvolvimento de conceitos, reflexões, formas, textos, imagens, jogos. O material foi criado a várias mãos e muitas ideias, sempre acompanhadas de debates. Quando o Material Educativo estava praticamente pronto e precisava ser testado e avaliado, a equipe do educativo começou a ser contratada: secretaria, coordenadores e produtores. Em seguida, foram contratados os supervisores que trabalhavam diretamente com os educadores responsáveis pelo atendimento ao público. Estes profissionais foram fundamentais para que o trabalho acontecesse com qualidade crescente, pois eram bem-humorados e muito parceiros, estavam sempre atentos e presentes. Pessoas que cuidavam de seus grupos com responsabilidade e rigor, cada um a seu modo, considerando suas experiências e encarando as dificuldades como possibilidades de transformação. Formar a equipe de educadores talvez tenha sido um dos maiores desafios. Entre os 2000 currículos recebidos, foram escolhidos 700 para entrevistas, feitas pela equipe de coordenação e supervisão e, destes, 500 iniciaram o curso. Estudantes universitários de vários lugares, de várias áreas, com características bem diferentes uns dos outros, o que é extremamente rico e, ao mesmo tempo, mobilizador para criação de estratégias educativas que propiciassem o diálogo e a troca, agregando novas experiências à formação dos estudantes. Do grupo inicial foram selecionados 300 estudantes para trabalhar na 29a Bienal que, divididos em subgrupos, eram coordenados por um supervisor, com quem se reuniam diariamente. Esta foi uma Bienal de parcerias. A parceria com as instituições culturais de São Paulo foi também uma ação marcada pela troca. A formação dos educadores que mais tarde atenderam o público em visitas orientadas aconteceu em parceria com 23 instituições culturais e foi organizada em duas etapas: na primeira , 500 educadores realizaram visitas orientadas nas instituições culturais, onde houve um curso a fim de prepará-los para o atendimento ao público durante a mostra. A intenção foi que esses estudantes tivessem contato com uma diversidade de olhares e conhecessem várias maneiras de dialogar com as obras de arte e com o público, e pudessem construir uma visão própria do papel de educador, tendo contato com diferentes procedimentos, metodologias e não só a referência que a curadoria e a equipe propunham. As instituições parceiras se colocaram disponíveis, com extrema competência, e prepararam encontros de qualidade, ótimas palestras e visitas orientadas bem planejadas. Foi também estimulante e enriquecedor o movimento dos educadores indo às instituições e depois voltando para os seus grupos e conversando com seus pares. Na segunda etapa da formação de educadores, os 300 estudantes selecionados acompanharam visitas orientadas pelos curadores, palestras com os curadores-chefes, assistentes de curadoria, equipes de arquitetura e design, realizaram reflexões sobre ações de acessibilidade, estudos de roteiros, conversas com artistas e visitas ao pavilhão para observação da montagem, participaram de estudos e pesquisas visando à ampliação do repertório para o encontro com o público. Essas etapas de formação deram início a uma formação continuada que se estendeu ao longo do trabalho, o que foi crucial para criar um ambiente participativo e autônomo, propício à construção conjunta de compromissos para atuação na mostra. Os desafios que se apresentaram durante a Bienal: constante reelaboração do trabalho equipe jovem heterogênea investigação do novo espaço da mostra descoberta das potenciais relações entre as obras e o espaço criação de logística de funcionamento e recepção do público elaboração de escala para grande quantidade de público diversidade de públicos a cidade na Bienal. O grupo de educadores era extremamente diverso e, com raras exceções, a maioria deles tinha pouca ou nenhuma experiência de trabalho. Assim, foi preciso colocar regras claras, diferentemente do que acontece em instituições com equipes menores, em que na convivência os papéis vão se configurando. Necessitávamos criar definições muito precisas para alguns aspectos da organização. Numa escala de atendimentos da ordem dessa exposição, com 22 grupos de quarenta pessoas chegando de 40 em 40 minutos, era como se a cidade se derramasse para dentro do prédio da Bienal. Todos os problemas que existem na cidade, conflitos, disparidades sociais, questões psicológicas, professores em muitos casos insatisfeitos com sua profissão, agressividade, toda essa configuração brasileira contemporânea acontecia no dia a dia da mostra. Precisávamos estar inteiramente presentes para que os encontros acontecessem, para que as pessoas pudessem perceber e se relacionar com as obras, pudessem criar novos sentidos para seus problemas diários refletindo sobre as questões poéticas apresentadas pelos artistas. Discutíamos sobre como ocupar os espaços do prédio, como fazer deslocamentos. Estávamos atentos para ouvir, perceber e agir. Precisávamos garantir que o espaço e o ambiente fossem receptivos, mas estávamos abertos ao que se apresentava. Precisávamos cuidar da segurança e do acolhimento, mas abríamos espaço para o imprevisível, próprio das relações humanas, para o imponderável, o incontrolável da criação do corpo coletivo diante das obras, dentro das obras, em contato uns com os outros, o que sempre traz surpresas incríveis. A busca constante era navegar sugerindo rotas, mas também estarmos dispostos a nos deixar levar. A 29a Bienal foi um espaço de muitos diálogos, um lugar de possibilidades, de descoberta e de muita, muita aprendizagem. Os educadores encontraram seus próprios caminhos para conversar sobre as obras. Nas reuniões semanais com a coordenação, contavam sobre suas experiências, escolhas e desenvolvimento de ações. Tínhamos a preocupação de que olhassem atentamente para o que estavam fazendo, para gerar conexão e rigor. A equipe de coordenação fez várias supervisões de visitas a fim de orientar os educadores para a escuta, para a conversa sobre as obras em questão. O Educativo está a serviço da arte e do visitante, está presente para criar um ambiente que possa viabilizar encontros. Através das visitas com ateliê, ateliês propostos por artistas, ações poéticas, apresentações musicais, teatrais, narrativas de histórias e a Sala de Leitura, o público participou de oficinas e apresentações que tinham a intenção de criar atravessamentos, possibilitar que cada um ocupasse seu espaço, que se sentissem acolhidos, onde fosse possível pesquisar, pensar e investigar conceitos, imagens e o próprio corpo interagindo com o espaço e os materiais. Os terreiros eram lugares de aportar, fosse para uma ação específica ou apenas para descanso ou reflexão. O Educativo organizou uma programação específica para crianças, famílias, e educadores. A programação para crianças e famílias foi orientada pela seguinte questão: o que pode ser transgressor e político para a infância? O objetivo era oferecer a cultura da infância para a infância, trazendo-a para dentro da Bienal. Um outro ponto importante que orientou o nosso trabalho surgiu em encontros nos CEUs, Centros Educacionais Unificados, com professores da rede municipal, em que eles questionavam: por que os artistas de bairros distantes, que revelam a cultura popular ou urbana, nunca estavam na Bienal? Essa pergunta reverberou com força em todos nós e começamos a pensar que tais artistas precisavam estar na Bienal. Artistas anônimos, Pontos de Cultura, jovens dos vocacionais de bairros distantes do centro de São Paulo, grupos dos CEUs que cantam, dançam, fazem teatro, fazem música. Do mesmo modo que levamos a Bienal para a cidade, convidamos a cidade a participar da Bienal, levando a Bienal ao CEU e à Cidade e trazendo a cidade, em toda sua diversidade, para dentro dela. Uma característica da nossa equipe é escutar o que vem até nós, o que vai acontecendo com os afetos e se afetar com o que afeta o outro. A marca do Educativo é ampliar seu território no sentido de acolher e de buscar os públicos mais variados. Foi fundamental o apoio que tivemos de todas as instâncias da Fundação Bienal de São Paulo para que esses encontros se tornassem reais e o Educativo, permanente. Ouvíamos algo, comunicávamos e compartilhávamos com a diretoria e outros setores, e, assim, ideias se acendiam. Nesta catalisação de aproximações todos têm que poder tomar a voz. Se as pessoas têm o que falar, precisam ter espaço para falar. Essa também foi uma característica do nosso trabalho. Todos nós educadores fizemos um trabalho dialógico, em que as pessoas escutavam, falavam, escutavam e dialogavam, escutavam e ficavam em silêncio, e ouviam, em pequenos encontros ou grandes conversas, a voz em movimento. |
Stela Barbieri