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Encontrar Livros

Stela Barbieri, 31 de agosto de 2017


As viagens têm potência para nos colocar em estado de leitura, conhecer um lugar novo, ou reencontrar um espaço que nos é familiar e que gostamos de voltar quando queremos descansar ou nos aventurar. Deslocar-se mobiliza a nossa atenção e pode nos desanuviar de uma ação mecânica que o dia a dia cheio de tarefas tem o risco de nos trazer.

Hoje, estou em uma floresta de Mata Atlântica, um lugar de que gosto muito e volto sempre que posso. Natureza abundante, com muitos passarinhos, esquilos, coelhos, insetos de formatos e cores inimagináveis. Por um longo período do meu dia, ponho a atenção nos acontecimentos da natureza que não para.

Neste lugar, o espaço, as imagens, os sons e os cheiros me deixam totalmente presente, mas logo tenho vontade de ler. E no desejo de dialogar sobre a natureza e sua tateabilidade, me dedico à leitura de Os Olhos da Pele, de Juhani Pallasmaa. E tudo neste livro me traz de volta à floresta que me rodeia. Pallasmaa fala da solidão contemplativa, uma sensação à qual a floresta e o livro me remetem.

O autor afirma que os nossos sentidos, incluindo a visão, são extensões de nosso tato, diz que os sentidos são variações e especificações do tecido cutâneo. Para explicar melhor cita o antropólogo Ashley Montagu, que, por sua vez, baseado em evidências médicas, confirma:

"(A pele) é nosso órgão mais antigo e mais sensível, nosso primeiro meio de comunicação e nossa protetora mais eficiente… Até mesmo a córnea transparente dos olhos é coberta por uma camada de pele modificada…O tato é pai de nossos olhos, nosso nariz, nossa boca. Ele é o sentido que se especializou e gerou os demais, algo que parece ser reconhecido pelo fato de ser considerado há muito tempo ‘o pai de todos os sentidos"

Os Olhos da Pele me fez pensar na pele de tudo que estava em volta de mim e perceber mais detidamente a arquitetura da natureza e suas várias constituições, que sugerem tantas outras construções. Nossa multissensorialidade é enriquecida quando relacionamos nossos campos de experiência e catalisamos aprendizagens nestas relações.

Neste encontro de leituras, vamos elaborando outras dimensões do cotidiano. E eu me detenho a reparar na singularidade de cada folha da floresta.

A diversidade de tons de verde e as formas das folhas me mobilizam a pensar em meus alunos e imagino que seria rico se eu preparasse uma aula cuja proposta fosse investigar as folhas desta floresta onde eu estou.

Uma aula na qual as crianças pudessem observar a estrutura das folhas, suas superfícies táteis, a umidade contida nelas, suas cores e formas, poderíamos ler sobre a estrutura das plantas em livros de botânica e relacionar com o que estivéssemos estudando.


LIVROS QUE NOS ATRAVESSAM

O desencadear dessas ideias revela como a presença dos livros nos permite dialogar com o pensamento do outro. Pensamento que pode nos abrir novas frestas de aproximação com os assuntos que nos interessam e movimentar nossos próprios pensamentos e percepções, numa rede de conexão e sentidos que vão além das categorizações de gêneros ou estilos e podem nos atravessar, trazendo ampliações e desvios ao que estamos imaginando em nossos processos de aprendizagem.

Os livros, em meio a vida cotidiana, sempre me trazem deslocamentos e abrem comportas ao me apresentar possibilidades.

Esse cruzamento de leituras táteis começou em minha adolescência, em uma Biblioteca Municipal em Araraquara, no interior de São Paulo. Era na Rua 6, a uma quadra de minha casa, o lugar onde me sentia mais instigada e movida a conhecer e fazer arte.

Lá fui apresentada, pessoalmente ou por meio de suas obras, a poetas, romancistas, gravadores, músicos de várias idades e estilos.

Naquela biblioteca encontrei a possibilidade de reunir pessoas para conhecer, fazer e pensar arte, sentindo a densidade da madeira ao fazer uma xilogravura ou o volume de um livro antigo de poemas gregos com suas páginas espessas.

Um lugar aberto, no qual as várias áreas do conhecimento se encontravam e uma cuidadosa programação nos era oferecida.

Ali, o livro estava disponível e fazia parte da vida.

Era uma biblioteca sem grandes burocracias, onde o acesso ao livro era algo cotidiano e simples, nos trazendo acolhimento, intimidade e o desejo de voltar no dia seguinte.

Podíamos estar lá, não só para ler, mas para conviver entre livros e ter contato com outras áreas de arte. Podíamos retirar livros e levá-los para o ateliê ou para a sala de aula de poesia.

Seria bom se os livros estivessem sempre assim, nos lugares em que gostamos de tê-los por perto – ateliês, dentro dos metrôs, nos pontos de ônibus, nos bares, nas praças, na praia, no meio das florestas, lugares curiosos nos quais as pessoas têm prazer em folheá-los, curiosidade em conhecê-los.


TROPEÇAMOS EM LIVROS

Tempos depois da história em Araraquara, me deparei com um tanque de areia, no qual encontrei livros de botânica ou histórias sobre a vida dos insetos e a estrutura das joaninhas. Um momento que me fez lembrar de minha adolescência e da presença do livro no dia a dia sem ser utilitário, sem endereço certo, apenas movimentando o interesse de conhecer, lado a lado com outras materialidades.

Este novo momento aconteceu em setembro de 2016, quando fiz uma viagem de estudos para Barcelona e região com a Red Solare Argentina, uma rede que tem como intenção difundir e promover a proposta educativa de Reggio Emilia, a cultura da infância e os direitos de crianças.

Nessa viagem visitamos várias escolas públicas rurais, outras escolas em cidades pequenas e em Barcelona. Conhecemos escolas de Educação Infantil, Ensino Fundamental 1 e 2 e Ensino Médio.

O livro, em grande parte dessas escolas, está por todo lado. Além de ficar em bibliotecas ou nas salas de aula, ocupa também alguns lugares inusitados como os jardins, a cozinha, a sala de costura, a marcenaria, o território das construções…

A irreverência e a alta relevância com que o livro é tratado nessas escolas me fizeram pensar na familiaridade que se pode ter com a leitura, não como algo sagrado, mas como um sujeito de nossa experiência, em um ambiente de partilha.

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Livro presente em mesa de construção na Escola Congrés- Indians

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Na marcenaria também os livros podem ser consultados

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Ambientes das salas de aula onde a atmosfera convida a leitura e a interação entre os territórios

Em livro inserido na relação dos acontecimentos, lido por tantos, folheado por outros, presente na pulsação da brincadeira, vigoroso na atualização de seus caminhos.

Pesquisar insetos no tanque de areia ou em meio as plantas, com lentes, pás, dicionários, contos, livros científicos traz a possibilidade de escolher o caminho da investigação e a disponibilidade material para aprofundar a pesquisa.

Dialogar com outros por meio da leitura, na partilha do gosto pelo mistério do mundo, vitaliza nosso desejo de ir mais fundo.

Por trás daqueles livros, haviam as escolhas de adultos que, com atenção, buscaram leituras suculentas que dialogassem com as crianças naquele lugar. Esta escolha é uma curadoria que traz uma intencionalidade ao sugerir um título, uma leitura que possa ser rica e expandir as possibilidades de alguns assuntos, ou suscitar a atenção para outros não são tão facilmente imaginados.

Uma leitura que enriqueça a complexidade dos momentos de aprendizagem, disponíveis em todos os lugares, exige do curador/ professor/ bibliotecário que se debruce sobre leituras mobilizadoras para cada espaço, uma pessoa que estude os títulos escolhidos e perceba quantas camadas tem aquela leitura, e imagine modos e lugares potentes para oferecê-los.

Essa presença transversal do livro, em vários lugares da vida e da escola, traz um entrecruzamento de leituras e percepções, cria um curto-circuito potente para os vários modos de aprender, convocando os sentidos e o pensamento a estarem presentes e em interação.




Imagem: Stela Barbieri, O espaço como suporte








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Stela Barbieri é artista, contadora de histórias, autora e educadora. Dirige o bináh espaço de arte.