AATENÇÃO IMERSA NA DISTRAÇÃO
Stela Barbieri
Ayvu, Rev. Psicol., v. 05, n. 01, p. 245-256, 2018
Quando mais me acho atenta é quando estou imersa na distração, movida por um estado de alerta cambaleante, quando não sei se como mexerica, se deito no sofá ou se simplesmente olho para o teto, embebida numacerta melancolia, um resto de angústia, quando estou assim fora do ar, distante do agora, absorta em algum tempo que não é presente. E, assim, me deixo levar humilde, sem comando ou autoridade, com uma presença embebida em nada importante, mas grávida de algo que ainda não sei. É nesse estado que surgem meus trabalhos de arte, aulas ou textos que mais me mobilizam.
Em um sobrevoo sem foco, mas imersa num caldo de um assunto de fundo: é nesse estado de “mundo da Lua” que, de repente, pensamentos despencam dentro de mim e me colocam totalmente atenta e incandescente.
Me ponho a navegar tateando uma ideia, uma materialidade, a queima de um papel em ervas. Esse é o estado de atenção no qual mais me coloco inteira, sinto a vida pulsante e em transformação. Um estado de ateliê, de rebuliço, de escavação, de construção, um movimento certeiro, inteiro.
Vejo esse tipo de engajamento inesperado muito presente nas experiências das crianças. São como notas de uma composição, em que uma traz a outra, com ritmos e atmosferas diversas, ou como partes de um conto em que um acontecimento muda tudo o que está por vir –enredo, temperatura, espaço cromatismo... O estado de ateliê, quando fecunda, traz algo tenro dessa atenção aberta e um tanto dispersa que conecta pela presença. São como poemas ou o gosto de uma fruta no ponto, ou ainda um delicioso beijo. Catalisam tanta vida num momento.
O envolvimento nesse processo de aprendiz sem fronteiras me joga numa rede que exige tempo para se embeber de universo e para submergir do caldo que se faz ao viver algo inesperado. Percebo que, com o passar da vida e o conhecimento de nossos próprios processos, podemos criar propositalmente esses mananciais como incubadoras de devires.
TRÂNSITO DE EXPERIÊNCIAS
Como artista e educadora, me ocupo da investigação e invenção no encontro entre vários campos: arte, educação, literatura, música. Interesso-me pelo entrelaçamento das varias áreas do conhecimento nos acontecimentos vividos em estados de ateliê, quando a percepção é ativada por um foco de atenção mobilizador, uma indagação, um ruído, um desajuste, uma divergência que nos põe em movimento. Vivo e proponho experiências e processos de interação entre arte e educação, em obras-oficinas (obras de arte que são ao mesmo tempo oficinas), espaços que convidam à coparticipação. Investigar e misturar a imagem, a escrita, as histórias, a arte e a educação me movem no cotidiano. Caminho em um universo híbrido de códigos verbais, visuais, táteis, olfativos, que são inventivos e cognitivos. Vejo cada vez mais as áreas do conhecimento entrelaçadas. A arte não está limitada ao ateliê ou ao centro cultural, mas dialoga com os vários momentos do dia a dia, na invenção de sentidos e ações que geram movimento, transformação, vida.
Em meu trabalho como artista, há sempre um convite ao visitante para colaborar na invenção das obras. Por outro lado (e complementarmente), no campo da educação a arte contemporânea é um elemento problematizador com o qual proponho diálogos.
Injetar estranhamentos e processos de reconhecimento atento é uma decisão a que me proponho tanto na arte quanto na educação. É um caminho que percorro em diferentes contextos –de exposições e museus a escolas e praças.
Entendendo a arte como um lugar capaz de gerar novos contatos afetivos e inventivos com o mundo e entre as pessoas, fui curadora do Educativo da Bienal de SP (2009 –2014, três Bienais e duas mostras especiais), diretora da Ação Educativa do Instituto Tomie Ohtake (2002-14), conselheira da Fundação Calouste Gulbekian, em Portugal.Além disso, participo da criação de currículos e sou assessora de artes de escolas em São Paulo, Rio de Janeiro e outras cidades no Brasil. Dirijo hoje o Bináh Espaço de Arte, em São Paulo, um ateliê vivo com aulas, grupos de estudo, palestras e formações.
DIÁLOGOS DE INQUIETUDESNO ATELIÊ
A potência inventiva se mostra nas variações dos modos de existir e perceber. Acreditando nisso, criei o Berilimbau, um curso para crianças dentro do Binah Espaço de Arte, umespaço para investigações e experiências com arte.Um lugar para inventar, se perguntar e tornar visíveis ideias e percepções, onde brincando com os materiais eao se encontrarconsigo mesmo e com os outros,as crianças fazem arte, pesquisam e aprendem.
Os encontros do Berilimbauacontecem em ambientes criados como circuitos de ativaçãodo sensível com materialidades provocadoras, que dinamizam as investigações das crianças.
Conforme as crianças vão chegando, escolhem caminhos para suas indagações e desejos e, na lida com os materiais, criam vetores, narrativas, marcas, lugares, espaços, linhas, que trazem indícios para o próximo encontro. Nossa inquietação permanece em diálogo com a inquietude deles.
Em estado de ateliê, existe uma pergunta que persiste em cada pessoa. Um movimento que se transforma, que desenha um território –as experiências que ela se propõe a fazer.
O estado de ateliê tem a ver com uma certa atenção às perguntas, criando, na lida do dia a dia, diferentes sentidos a serem enfrentados.
Talvez esse movimento vá desenhando um território singular daquela pessoa que se espraia ou entrelaça para um território do comum que as pessoas constroem juntas. Os movimentos individuais se irradiam.
A convocação da experiência acontece na lida com os materiais, em celebração e nos confrontos com a matéria-sujeito, na investigação do que não é conhecido.
A imersão na distração é o próprio estado de ateliê. Nele, construímos mirantes...
Construir um mirante, um lugar de onde se pode ver. Inventar vários mirantes, de pedra, palito, galhos, parafusose placas, mirantes faróis, mirantes cavernas, mirantes expostos ao vento, elevados de propósito, encontrados prontos.
Perceber-se em miração, deriva para olhar, conhecer seu próprio modo de estar, em paisagem aberta, olhando o que não foi visto.
Mirante de formiga, mirante de elefante, mirante de girafa, mirante para o precipício de dentro de si.
Escavar caverna, buraco. Oco, ser oco, sentir o oco, lugar para encaixar o corpo, o tornozelo ou só o pé. Deixar a cabeça para fora, se aquecer, passar calor, se esconder com lanternas na caverna, embaixo da mesa, dentro do saco, na caixa .
Também fazemos mares, rios.
Casas começando pela geladeira e pelo chuveiro.
Juntar guarda-chuva com cano, papel celofane com dinossauro, sabão com feijão e chegar no ponto de creme, um ponto macio que dá prazer de mexer e olhar.
Larissa chega cedo de fruta na mão e já começa a lidar com os materiais; tem prazer em inaugurar o dia. Miguel,com olhar aceso, quer saber o que o espera, já engata logo habitando um mundo de monstros e cavaleiros, de geladeira e de pandeiro.
Tutu vem devagar, gosta de estar com Migue, chega e fica ressabiado até a chegada do amigo, brinca, mas sofre com a soltura de Miguel e por achar que não sabe desenhar.
Procuram os materiais dispostos no espaço, têm autonomia e intimidade com o lugar. Ao se encontrarem com adultos, as crianças conversam pouco, começam o trabalho tateando os materiais, escolhendo o quefazer, atentas, achando um caminho.
A QUE AS CRIANÇAS DÃOATENÇÃO?
Os afetos vitais se dão na tatilidade da areia em caixas e no manuseio de vários objetos minúsculos.
Madeiras com espessuras, superfícies e tamanhos diversos, argila em três tons, pigmentos para fazer tintas, caixas de papelão, materiais gráficos e diversos papéis estão disponíveis em contexto aberto. As crianças fazem um circuito de afetos, transitando entre experiências.
Aurora, Ioiô e Enzo chegam juntos mais tarde, vêm de longe e não querem perder tempo. As crianças mergulham sem introdução. Ioiô faz misturas e colagens. Aurora desenha, desenha e escreve.
Enzo circula, observa e comenta :
–Está faltando o telhado nessa construção! Tem panos e paus...Os encontros acontecem em ambientes criados com a intençãoda ativaçãomultissensorial e de dar caminho ao que move cada criança. Materialidades são tensionadas, a fim de furar a normalidade e provocar a pesquisa.
As casas são assuntos recorrentes em nosso dia a dia no ateliê. Naquele dia, começaram em mesas de areia, com frutas de plástico e personagens de pano e seguiram em caixas de papelão empilhados para ficarem de pé, com janelas e lunetas para espiar os vizinhos. Crianças desenham interesses específicos, que muitas vezes se repetem ao longo dos dias. As crianças vão chegando, colocandourgências e problemas.
COMO A EXPERIÊNCIA DELES REVERBERA EM NÓS EDUCADORES?
No fim do dia um emaranhado de fios e acontecimentos se apresenta a nossa percepção, desafiando continuidades e descontinuidades.Há um encontro da atenção que permeia o desejo das crianças de constituir seus territórios e buscar as coisas que os estão ativando, com a nossa atenção ao observar suas experiências. A partir daí, preparamos novos contextos que sustentem as indagações e a continuidade da investigação. Cada um no seu mergulho, em contato com sua solidão e, ao mesmo tempo, atravessado pela presença dos outros.
As crianças evidenciam aspectos importantes de sua invenção e dialogam com eles, movidas pelo que criam. Suas perguntas se manifestam pelo corpo, pelo olhar, pela fala, pelo agenciamento atento com os materiais.
Assim como os artistas,as crianças se confrontam com seus trabalhos. Dialogam com eles e nos dão indíciospara os relançamentos. A criação do ambiente para o próximo encontro resulta de uma cartografia, onde o conhecimento das crianças e dos adultos seentrelaçam e desenham o percurso, no deslocamento.
No ateliê, todos os dias é precisoperceber o que deve ser mantido e o que deve ser retirado, para não correr o risco de uma desvitalização do território pelo hábito. Na repetição dos encontros,vamos criando diferenças. Quando voltamos para o mesmo lugar, ele já não émais o mesmo, pois os ruídos que criamos em nossos movimentos expressivos podem nos trazer outros elementos para continuar investigando.
Se uma criança tem uma pergunta sobre construção, elavai costurando essa pergunta. O que está perseguindo? O que está encontrando?
Trabalhando com o mesmo material,as crianças vão realizando pesquisas diferentes. A materialidade oferecida, por si só não dá conta do processo. O trabalho resulta também do jeito singular de cada criança e do diálogo com os adultos que trabalham com elas, seus universos internos e relações.
O CULTIVO DA ATENÇÃO ABERTA AO QUE AFETA
Buscamos cultivar uma atenção aberta ao que está movendo as crianças. Ao entrarmos em diálogo com as indagações e os interesses que as movem, podemos alimentar os processos de invenção e aprendizagem, cuidando da preparação dos ambientes, da atmosfera e também das dimensões e espessuras de materialidades e suportes.
A atenção pode seguir caminhos improváveis. Em um grupo de crianças entre dois e seis anos, o convívio intenso as leva a aprender umas com as outras.
Matheo, cinco anos, desenha cotidianamente com intensidade, enquanto Léo observa-o. O desenho de Matheo é bastante figurativo. Faz personagens com atributos claros, traço firme sem hesitação, jacarés, macacos. Todos os dias, ao chegar, procura papel duro, caneta preta, senta para desenhar. Enquanto isso, Léo gosta de brincar com as tintas, fazer misturas, construir casas.
Chega um dia em que Leo fica atento aos movimentos de Matheo desenhando. Em seguida, pega uma caneta em cada mão e começa a fazer um desenho cheio de movimentos e camadas, que vai ocupando todo o espaço do papel.
Desenho do Leo
ARTE NA EDUCAÇÃO E NA ESCOLA:O ALARGAMENTO
DO ESTADO DE ATELIÊ
Nas escolas e no ensino tradicional, há uma cultura que toma a arte como um fazer ligado às diversas modalidades –pintura, desenho, música, teatro –muitas vezes sem qualquer conexão com as urgências daquele que a faz. Neste contexto, a arte não é entendida como uma expressão singular.
O fato das crianças chegarem em casa com a pasta cheia de trabalhos "artísticos" dá aos pais a sensação de que a escola em que o filho estuda dá ênfase para a área de artes. Entretanto, fazer arte está relacionado a expressar urgências, ampliar percepções, entrar em diálogo com materialidades e trazer a si e ao mundo algum deslocamento.
A arte não está reclusa no ateliê. Fazer arte ou estar em estado de arte/ateliê tem a ver com uma certa maneira de se relacionar com o mundo e o modo como estamos atentos a ele. O momento de invenção é um momento de presença e de atenção dedicada.
Existe a possibilidade de a escola se assumir enquanto laboratório de invenções/aprendizagens, tal como são experimentadas pelas crianças e pelos professores.
Entre os espaços e contextos de aprendizagens, o ateliê pode ser um lugar diferenciado, um espaço de catalisação, provocando naqueles que ali estão, um estado de ateliê. Estar em estado de ateliê é se colocar frente à janela, percebendo as relações entre o prédio e océu; estar em estado de ateliê é ouvir o barulho da bola na quadra e perceber o ritmo da bola, que se agencia com o grito da criança; estar em estado de ateliê é estar em fricção com a materialidade das coisas, em uma alternância de vai e vem, que nos convoca a estabelecer relações. Estar em estado de ateliê é dar credibilidade ao que diz o corpo ao mexer na massa informe, ao sentir sua umidade, sua elasticidade limitada, sua densidade escorregadia, seus pedaços feitos de pó e sua maleabilidade.
Estar em estado de ateliê é um diálogo em presença, no qual tanto as pessoas quanto os materiais e espaços são sujeito da experiência. De acordo com a abordagem de Reggio Emilia –cidade italiana onde, nas escolas municipais de educação infantil, as áreas de conhecimento estão em jogo como múltiplas linguagens –, a escola é um grande ateliê. Ela convoca um diálogo entre o que é vivo e inerte em cada matéria, entre a pulsação dos movimentos e as relações de permeabilidade, no agenciamento entre as matérias.
Os alunos estudam em estado de ateliê. Estar em estado de ateliê é uma mistura pulsante de transformações constantes, é um estado de atenção móvel na integração do corpo no espaço e de ação viva, de ser atravessado pelos acontecimentos, um certo modo de ser atingido pelo mundo, tingido pelo mundo. Segundo Espinosa, nossa força vital está relacionada à nossa potência de sermos afetados pelo mundo.
O ateliê pode ser visto como estado de escavar e buscar palavras para encontrar ou fazer uma que grite o que se pensa; espremer a matéria para falar a voz que constitui o que se sente. Pincelar a cor para que, na relação entre as pinceladas, nas dimensões do território e no pulsar das fronteiras, as misturas de cores irrompam algum deslocamento.
EDUCAÇÃO CONTEMPORÂNEA E O PERIGO DA MANIPULAÇÃO
DA ATENÇÃO
Na educação contemporânea, em muitos casos excessivamente pragmática, focada em resultados, querendo apaziguar a aprendizagem, controlar o afeto, encaminhar a pergunta, calibrar a resposta, o estado de ateliê não entra.O descontrole da vida fica para depois. Querem descrever as etapas, minimizar os riscos de conflito e ensinar o caminho das pedras.
Querem escolarizar a ignição, estabelecer as conexões e morder a possibilidade que temos de dar lugar ao que nos move, de aprender com o que acontece, de perceber o que nos conecta.
Determinam que o conteúdo da arte é aprender o uso da cor. Enquanto as crianças querem aprender as entranhas da cor!
Querem estabelecer contornos e pontos de chegada. Enquanto a criança quer testar limites, diluir fronteiras, virar do avesso descobertas.
Querem eleger importâncias, dominar todas as instâncias. Enquanto os processos de arte são contatos selvagens com rebeliões indomáveis.
Querem que a arte se adeque a um certo modo de diálogo que seja fácil de entender, num território previsível. Mas a arte é justamente a rebeldia do ser. Na arte da fricção entre pedras, o som das pedras é o caminho a percorrer.Querem ensinar a pintar, a conhecer outras culturas, a mapear modos de fazer, mas cada indagação tem uma certa convocação de vida que exige de nós invenção, linguagem, materialidade!
A matéria da arte é a vida.
A matéria da educação é a vida.
A matéria da matéria é a vida.
O quanto de vida há em nossos processos de aprendizagem? O quanto de vida há nos nossos modos de inventar relações? O quanto de vida tem nossa atenção?
REFERÊNCIAS
KASTRUP, Virginia. O devir-criançae a Cognição contemporânea. Psicologia:Reflexão e Crítica,v.13, n.3, Porto Alegre, p. 373-382,2000.
VECCHI, Vea. Arte y creatividad en Reggio Emilia. El papel de los talleres y sus posibilidades en educación infantil.Espanha: Ediciones Morata, 2012.