LUGAR PARA PLANTAR
Olivia Ardui
Os jardins são associados, no inconsciente coletivo, a um complexo sistema simbólico com dimensões filosóficas, místicas e políticas. Dos jardins suspensos da Babilônia, passando pelos jardins renascentistas, orientais, até os atuais quintais urbanos, esses espaços organizam e incluem elementos do mundo vegetal em uma estrutura artificial pensada pelo homem. Talvez seja por essa qualidade de meio-termo entre o homem e a flora que o jardim constitui um ambiente tão privilegiado para reconexão e redescoberta da natureza e seus ciclos, mas também um lugar que acentua a propensão à interioridade, incitando uma deriva pelos caminhos do imaginário e das memórias. Como se a vivência do jardim, reminiscência distante mas onipresente do paraíso, interviesse como convite ao regresso a uma experiência mais verdadeira e simples. Por essa faculdade de reaproximar o homem tanto da natureza física como da sua própria essência, o jardim poderia ser entendido como um agente que suscita reflexões acerca de diferentes aspectos de sua vida. Não é por acaso que a artista e educadora Stela Barbieri adota o jardim em sua obra-oficina Lugar para plantar.
Realizada especialmente para o Sesc Osasco, a proposta insere-se no Projeto Lugares, um conjunto de obras-oficinas idealizadas para diferentes unidades do Sesc São Paulo e que incita a interação direta com o visitante, cada vez com uma abordagem distinta. Se os outros espaços confeccionados por Stela Barbieri nessa série são fruto de considerações sobre parâmetros próprios da cultura, como a questão da leitura ou da arquitetura, Lugar para plantar propõe um encontro singelo com a natureza, da qual estamos cada vez mais afastados em meio urbano. Essa desconexão e esse afastamento característicos da contemporaneidade, somados aos nossos cotidianos marcados pela ânsia de produtividade, pela alienação induzida por uma virtualização progressiva das relações interpessoais e de trabalho, são causa de desajustes, mesmo que inconscientes.
A área externa gramada do Sesc Osasco, pontuada por árvores frutíferas vasos com plantas de diversas espécies, é ocupada por algumas mesas e prateleiras com sementes, diversas ervas e flores. Como se estivessem em um laboratório, os visitantes, tanto adultos quanto crianças, são convidados a manusear essas sementes, plantá-las em vasos que estão à disposição, manipulá-las para formar composições ou mandalas, sendo assim estimulados a observar com cuidado, tocar, sentir, enfim, a parar por um instante e estar presentes. A instalação também chama a atenção para os ciclos de regeneração perpétua das plantas, passando do nascimento, da maturação e da morte até uma transformação e, assim, apontando para uma alternativa à temporalidade linear e unidirecional que rege nossas vidas. Nesse dispositivo serão organizados ateliês e seções de leituras de histórias, todas elas voltadas a esse retorno existencialà natureza, mesmo que fabricada, passada pelo filtro do homem na forma de um jardim.
O conceito do jardim, além de protagonista da proposta educativa dessa obra-oficina, também é uma metáfora relevante para abordar o conjunto da obra de Stela Barbieri. Efetivamente, além de o mundo vegetal sempre ter sido uma fonte de inspiração para a artista, o jardim, por ser um híbrido entre o autêntico e o artificial, a natureza e a cultura, encarna a ideia de uma dialética entre duas extremidades, dinâmica que também é inerente a vários trabalhos da artista.
Depois de um início de carreira em pintura, Stela Barbieri dirigiu o seu foco para a experimentação com materiais e suas texturas. O pigmento da tinta que antes era aplicado na tela passou a tingir líquidos contidos em recipientes de vidros ou em plásticos, ou a impregnar formas irregulares em látex ou lã. Em esculturas precárias e orgânicas, essa confrontação entre estados líquidos e sólidos denota uma condição frágil de impermeabilidade, em que um elemento fluido é contido, mas a qualquer momento, e às vezes de fato, infiltra-se, transpassando o seu receptáculo. É o caso por exemplo de Sem Título ("Ampulheta"), em que dois plásticos são pregados à parede contendo sementes de urucum que tingiram de vermelho o óleo que pinga de um plástico para o outro, suscetíveis de ceder ao peso. Se essas obras esculturais, realizadas nos anos 1990, já apresentavam certa autonomia em relação ao formato da pintura, elas ainda eram fixadas à parede. Progressivamente, as experimentações de Stela Barbieri autonomizaram-se, e a artista buscou realizar instalações de maior escala, como é o caso de Circuito de Narrativas Líquidas realizado em 2013. Nessa instalação, estruturas metálicas são o suporte para uma série de vidros e mecanismos que ora retêm, ora fazem circular um líquido de cor laranja, em uma condição de constante movimento e transformação.
Para além da sua proposta educativa, a obra-oficina de Stela Barbieri propõe, de maneira mais sutil e indireta, retomar vários aspectos-chave da sua produção, em um momento mais introspectivo e reflexivo de sua trajetória. Primeiramente, Lugar para plantar dá continuidade às instalações de grande porte realizadas nos últimos anos e precede alguns projetos em espaços públicos. Em seguida, a referência direta à natureza em um contexto urbano reitera um binômio transversal na obra da artista: sólido e rígido/maleável e fluido. Enfim, a importância da maquete no processo de realização desse trabalho, assim como a relação entre as escalas micro e macro, também é uma constante na produção artística de Stela Barbieri. Tal como o jardim, historicamente associado à representação da totalidade do cosmos em miniatura, a experiência da obra-oficina é uma metáfora: trata-se de semear, plantar, e cultivar sementes para a vida.
Olivia Ardui