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“(...) achar-abordar-penetrar é sem fim”*: lugares moventes em campos de presença
Galciani Neves



Um lugar é um estado de ânimo. Embora mencione uma dimensão espacial em que as coisas ocupam posições, é feito de singularidades humanas e de seus desordenamentos, de fricções entre distintos modos de agir, de ressonâncias de vozes que sopram de nós. De toda maneira, a palavra lugar, no dicionário das nossas imaginações, não é um abrigo lacrado a ser explicado geometrizadamente, mas talvez a intensidade que pulsa nos “habitantes delicados das florestas de nós mesmos”, como disse o poeta Jules Supervielle. Habitantes estes que deambulam, cartografam passagens e criam lugares, como afazeres da vida.

Stela Barbieri nos convida a partir, avistar paisagens e regressar com ramos, ventos, cadernos de viagem, punhados de areia e aportar em “obras-oficinas”, onde mescla percepção e desejo construtivo e onde podemos (re)construir outras florestas, ao mesmo tempo em que adentramos histórias e tramas no espaço. Assim, os “Lugares” são como mapas sem limites, com minúsculos cantos, pontos e brechas compartilháveis no vasto campo em que não somos apenas o eu. Constam em seus territórios garatujas, ensaios visuais e cores coreografando autorias em livros.

Enquanto formas de sociabilidade e afetividade versam, acumulam e traduzem coisas, percepções e vontades tremulantes passam a integrar os “Lugares” e fazê-los vibrar. Uma vez ali, pode-se vivenciar pormenores à medida que “nos permitimos desmecanizar as gramáticas do corpo e do espaço”, propõe a artista. A história desses “Lugares” são muitas a serem inventadas e inúmeros são os contornos a serem desenhados e transbordados no dentro-fora de nós.


Livro: lugar em que somos e estamos


À espera, a ponto de prolongar-se, tal como se tivesse tentáculos, envolvendo o leitor, o lugar entre ele próprio e o leitor. Eis o livro. Lugar para ler é uma biblioteca de livros em estado de espera, com prolongamentos que são seu acontecimento – gestos constituidores, dispondo-se a olhos e mãos que lhes mudarão a escala e até mesmo sua feição. Os livros estão ali em múltiplas personalidades, em versões ambivalentes: dispersos em folhas coloridas, contando um tanto de história ou ainda ansiosos por recebê-las; abertos em formato de asas ou adormecidos guardando o tempo da escrita. Lugar para ler é uma obra-oficina onde Stela Barbieri desaguou seus livros de artista e cadernos de anotação por entre livros que ainda vão ser. Todos estão em permanente continuação, afeitos ao imprevisível de seus habitantes.

Ver-ler-percorrer são conjugações da fruição dos livros da artista. Ocorrem como sequências de espaços, onde o desenho espalha-se mergulhando pela transparência das páginas, cortando-as e desdobrando- se descontinuamente. Nesses livros, a ideia/ato de desenhar ocorre na palpabilidade e na experiência de seus materiais, texturas e cores. Assim, quando manuseamos suas páginas-asas, distintas formas revelam-se, enquanto enquadramentos de paisagens abstratas se expandem. E uma escritura–desenho se dá construindo pontes entre o espaço da página e o lugar onde estamos.

A prática de narrar histórias, de se arriscar em planos, ideias e projetos de obras, e a reflexão sobre arte, educação e os inúmeros atravessamentos cotidianos fragmentam-se nos muitos cadernos de Stela Barbieri. São anseios e registros do tempo que narram uma vigília de si mesmo em permanente porosidade com o mundo, em folhas, desenhos e guardados da vida. Concentram-se nesses cadernos torções da língua incentivadas pela organicidade de seus desenhos, compondo assim um léxico nada categórico em que imagem e palavra fundemse permanentemente na rotina criativa da artista. Lugar para ler abriga uma multidão de autores-leitores que montam capas, folhas de rosto, páginas, lombadas e que inventam outras anatomias de livros, migrando de volume em volume, de letra em letra, de entrelinha em entrelinha, navegando pelos rios de histórias por vir.


Através do lugar: uma poética-ação lúdica


O homem pode ser definido, afirma Johan Huizinga, pela existência de um componente “lúdico”: impulso nato e formador de sua cultura pessoal. Assim, o homem vive momentos conscientes de reflexão e de expressão verbal e corporal, em que fenômenos da vida e da natureza são avistados de modo a possibilitar potenciais ritmos de transformação. Tal visão pode desmantelar alguns de nossos habituais pressupostos: “arte é coisa séria” ou “alguém encarregado de alguma responsabilidade séria deve afastar-se da postura do brincante”.

Podemos pensar que Lugar para criar espaços é uma atmosfera de brincadeira – aspecto há muito tempo inerente aos processos de criação de Stela Barbieri e que engendra nesse “lugar” gêneses de arquiteturas flutuantes. As unidades fundamentais propostas pela artista – varetas coloridas, formas esféricas e um tablado de madeira – não se encerram como ferramentas utilitárias, nem como verdades formais para a construção de um espaço. São antes instrumentos de uma poética-ação em que seus construtores atravessam e concebem um lugar de convívio para ser e atuar. A inspiração é livre e acontece também na mão que doa sua forma.

Lugar para criar espaços é um tablado mutante, onde relações de coexistência de espaços, a serem construídos e desenhados, personificam cenas e mundos imaginários. Nesse “lugar”, o “Homo ludens” usufrui de uma realidade brincante e experimenta, sem verbos delimitadores, ficções sociais, éticas, estéticas. E a imagem ritualística do jogo e a brincadeira de levantar espaços constituem-se experiências de arrebatamento diante do novo e, sobretudo, da excitação diante da invenção, propulsionando processos de imaginação criadora: tensão, movimento, mudança, entusiasmo pelo espaço, onde tudo parece gravitar poeticamente.








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Stela Barbieri é artista, contadora de histórias, autora e educadora. Dirige o bináh espaço de arte.